Certas coisas sempre retornam, e eu não sei conviver bem com elas. Como essa sensação de inquietação que as vezes sinto. Fico batendo o pé no chão involuntariamente, enquanto fumo um cigarro atrás do outro e meus pensamentos correm soltos e acelerados. A sensação de inutilidade que me dá, de despertencimento. A sensação de que sempre falta alguma coisa que eu nunca descubro o que é.
Talvez eu devesse continuar ignorando isso tudo. Talvez continuasse sendo fácil ser uma pessoa fácil. Mas não continua, e esse é o ponto. Parece que tem sempre uma explosão acontecendo dentro de mim, pronta pra sair pela minha boca a qualquer momento. Parece que tudo de errado tem a ver comigo, que tudo é culpa e problema meu. Parece que eu não acredito em nada e nem ninguém, e que nada nem ninguém acredita em mim. Parece as vezes que fica um choro preso na garganta, querendo sair e lavar meus olhos das mágoas e frustrações que eu passei.
Porque de alguma maneira, elas sempre retornam. Retornam e me fazem sentir estúpida por perceber que ainda me doem em certos pontos, e ainda atrapalham o que sou agora. O tempo que eu perdi me assombra, me persegue. Eu deveria estar indo pro último período agora. Eu deveria ter sonhos normais e banais como toda a população. Eu deveria aceitar o ônibus ruim e o asfalto esburacado. Eu deveria me vestir sem pensar. Eu deveria dizer o que sinto a minha família. Eu deveria pôr pra fora o abandono que sinto todo dia, e a sensação de estar sempre prestes a ser deixada pra trás.
Daí o dia começa, e é sempre mais fácil ser aquela que sorri. Aquela que leva tudo na banalidade, e cria problemas idiotas na cabeça, pra deixar os que realmente assombram bem guardados. Ninguém sabe o que me assombra. Ninguém sabe o que me assusta. Ninguém sabe o que se passa na minha cabeça, e eu simplesmente não consigo contar. Quando as pessoas mais próximas não te inspiram a confiança que deveriam, parece ficar sempre meio impossível confiar nas que vem de fora. E mesmo que eu acredite que consigo, sempre fica um sentimento não falado, uma tristeza não compartilhada.
Eu me sinto assim hoje. Me sentia assim a 10 anos atrás. Eu me sentia assim a 15 anos atrás. Acho que sempre me senti assim. Sempre me senti não querida, persona non grata na vida. Todos os meus colegas de escola eram banais e felizes, e eu invejava essa felicidade. Invejava porque desde cedo eu nunca senti. Não fui uma criança feliz, com pensamentos de criança feliz. Eu não conseguia achar que problema era decidir entre brincar de pique pega ou pique esconde. Com 7 anos tudo que eu desejava era que o domingo nunca chegasse, pra não ver minha mãe apanhando e ter que me trancar no quarto até tudo acabar. Com 9 anos tudo que eu desejava era não ser a idiota que não sabia de nada. Com 11 anos tudo que eu desejava era ser comum. Com 13 tudo que eu desejava era que meu padrasto morresse. Com 15 tudo eu que desejava era ir embora de casa. Com 17 tudo que eu desejava era minha velha vida de volta. Com 18 tudo que eu desejava era que minha mãe não odiasse meu namorado. Com 19 tudo que eu desejava era que minha vó não morresse.
Agora tenho 20 anos. Pela primeira na vida eu consigo acordar e sorrir. Eu consigo acordar e agradecer pelas mudanças. Porque pela primeira vez na vida eu tive coragem de não me acomodar. Pela primeira vez na vida eu falei o que pensava, eu fiz o que queria. Eu deveria estar agora dormindo e sonhando com as coisas boas que tem acontecido.
Mas não, estou aqui. Estou aqui e coloquei as coisas boas num pacote em cima da estante, eu tirei elas da cabeça por meia hora, pra pensar nessas coisas ruins, nesses fantasmas. Eu peguei as coisas boas e deixei elas pra amanhã, e eu não fazia isso a meses.
Não gosto de parar pra pensar. A ignorância é uma benção. Eu queria sim ser comum, ser normal. Estar agora vendo tudo cor de rosa e levando as coisas. Mas eu estou condenada a esse mar de braços, puxando minhas pernas pra baixo e insistindo em tirar minha cabeça do mundo da lua. Eu estou fadada ao retorno.
Minha mãe diz que estou fadada ao fracasso. Ela não sabe o quanto me magoa quando diz isso. Ela não sabe e eu não digo. Porque se eu falar, ela vai me dizer que diz isso da boca pra fora. Mas ela não entende que o que é dito da boca pra fora também machuca, também ofende.
No final eu acredito que estou fadada a algo menos pesado que o fracasso. E tento acreditar não estar assim tão condenada. Mas é difícil, tão difícil. Quando tudo parece perfeito, sempre tem um alfinete pra espetar o pé.
Talvez esse seja o mau de andar descalça.
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